Capítulo XXVII - Um Templo de Jasmim - Partes I e II

E é assim...


Parte I – Inícios, Rotinas e Fins

Todos os dias são feitos do mesmo: inícios, rotinas e fins. Inícios como as flores desabrocham com o aparecimento do sol, rotinas quebradas pelo canto de uma ave inocente, que interrompe os passos apressados de quem corre para o trabalho e finais felizes ou tristes, dependendo da posição com que os encaramos. Este dia, em nada é diferente dos anteriores: há inícios no acordar sobressaltado com o alarme do despertador, as duas voltas na cama a reclamar com a vida, com a almofada e com a luz que estreita entre as frestas da janela, rotinas na preparação para o trabalho, no juntar os papéis dispersos na noite pela mesa e atabalhoadamente encafuá-los na pasta coçada e sair para apanhar um autocarro como sempre fora do horário, e há fins, como o mendigo que desta vez não abriu os olhos nem lhe pediu esmola para a sopa, o que não o preocupou.
Continuou o seu caminho atravessando a selva urbana num veículo apinhado, com gente chapa sete, de cores escuras, telemóvel no punho e ar cansado, apesar da hora matinal. Saiu na habitual paragem anterior para cumprir os 30 minutos de caminhada que o médico lhe recomendara, dando encontrões e insultando os transeuntes que o imitavam. De vez em quando foi parado por um semáforo, sempre a confirmar nervosamente os bolsos à cautela dos assaltos. Com o café já bebido, entrou no edifício e afogou-se no mar de cubículos de onde saía, desconexo, o barulho de muitos martelares em teclados invisíveis, à frente de monitores incolores.

Enquanto para uns o início coincidia com o nascer do sol, para outros era o fim, como o grande ciclo da vida, o que faz com que a Terra se mova e o universo se mantenha suspenso no que quer que não seja, matéria/antimatéria, ying e yang.
Para esse seres da nossa noite, os dias não são dias, mas sim horas de sol, e a escuridão, horas de névoa, onde tudo o que acontece é encoberto pelo que os olhos não vêem e o coração não sente. De entre esse povo, está o mendigo já falado, aquele que parece adormecer mal a luz acaba, mas é apenas ilusão do nosso olhar não treinado em conhecer os Seres da Névoa.




Parte II – O final da luz

Quando o sol se põe, ou quando chove mas sabemos que chegou a noite, a luz que da estrela advém acaba-se, esgota-se como um produto com curto prazo de validade, deixando-nos na penumbra, que combatemos com lâmpadas artificiais, energia eléctrica que nos tira o medo do escuro e dos monstros que nele habitam. Para os mais velhos, tudo isto nos passa ao lado, contos para assustar a miudagem, mas as crianças, ainda puras, em idade que não podem falar e descrever, ainda os vêem e, por isso, choram à noite, umas de medo, outras de alegria.
Nessa altura, surge o edifício mais magnifico que alguma vez se viu, habitado por todas as formas existentes, qual arca de Noé, levantando-se mais alto que qualquer outra construção humanamente possível. Quem o vê, sabe que na luz não se vê nem se palpa, mas na escuridão brilha como uma estrela incandescente, com laivos de âmbar nos vidros das trabalhadas janelas e ouro maciço nas pesadas portas que escolhem quem entra.
Percorrido o manto de formas translúcidas que formam o percurso para a frondosa entrada, sente-se o odor de flores de jasmim, que penetra em todos os poros e eleva a alma e o sonho num nirvana de prazer. Até aquelas passadas mais irritadas acalmam-se nesse trajecto. Quem consegue chegar ao final, precisa de decifrar as runas inscritas nas portas, resolvendo os enigmas que milhares e milhares de anos de conhecimento travaram a violação de tão sagrado local.
O mendigo assim o fez. Atravessou os portões e pisou o manto luminoso. As formas lavaram-no com algo que não água, e perfumaram-no com jasmim. O espirito elevou-se e leu as runas das portas como se português fossem. Respondeu às mil perguntas e, por fim, entrou.

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