Capítulo XXX - 5 anos e uma história curta e deprimente

E é assim...
Passaram-se 5 anos num repente.1 ano desde a última vez que falei nisto e ainda  nada mudou...

História Curta e Deprimente

Olho pela janela e vejo um dia claro, claro como aquela madrugada em que te encontrei na rua, sozinho a chorar. As lágrimas de um homem perdido, sem rumo na vida ou orientações de qualquer tipo. Corriam pela tua barba rala como rios em torno de uma floresta ardida, lavando restos de uma noite que parecia ter passado em claro. Procuravas afeto e honestidade, algo que ninguém te pode oferecer neste mundo egoísta, mas que tentei transmitir com um abraço, tão grande e forte como os meus braços gélidos o permitiam. Consumiam-te sentimentos de culpa por ações que nem compreendi ao certo, mas ouvi com o coração aberto e concordei com um aceno de cabeça. Ficamos juntos, sentados ao frio nessa manhã, vendo o corrupio de uma cidade que aos poucos despertava num torpor zombesco, aumentando o ruido até ficarmos com os ouvidos cheios e alarmes e buzinas e termos que entrar naquele cafezinho que sempre quis ir mas não naquela situação. O proprietário serviu-nos um café bem quente para amornar o coração e esquecer o frio, mas o sabor foi tão amargo quanto de açúcar lhe deitei. Não mais voltamos àquele café e o dono ainda me olha de lado quando por ele passo na rua.

Os tempos que se seguiram foram atribulados. Lembro-me dessa semana em que andaste às pancadas na parede, fazendo-a pagar pelos teus erros, sem que a mesma tivesse culpa. Quantas vezes te desviei ou fiz um curativo nas tuas mãos ensanguentadas de raiva? Quantas vezes tive que pacientemente esperar que destrancasses a porta do quarto para poder entrar? Quantas vezes ouvi o teu choro horas e horas seguidas, contendo as minhas lágrimas, com o coração torcido e dorido por nada poder fazer? Senti-me com tanto ódio quanto tu tinhas. A tua raiva era a minha, mas a minha obrigação era parar e ajudar-te a superar. Senti-me assim.
Para aliviar mais começamos a andar, lembras-te? A quantidade de quilómetros que não calcorreamos para desanuviar toda a tensão… ainda ontem fiz um desses percursos, sozinha. Não é a mesma coisa. As gaivotas tornam-se mais aborrecidas e apenas grasnam até apetecer lançar-lhes uma pedra e mandá-las para o raio que as parta. O mar perdeu metade do azulão e a praia está mais poluída do que nunca. Sabes aquele espaço que dizíamos que íamos comprar para montar uma loja de animais? É agora um café moderno, um bar se não me engano. Deve ter sido caro para transformarem aquele espaço, todo cheio de luzes entrecortadas, cadeirões confortáveis revestidos de veludo vermelho e grandes copos com líquidos exóticos e coloridos. Havias de gostar de lá ir. Ainda não entrei, mas o boato é que é bem frequentado e até tem feito muita publicidade e sucesso entre a alta sociedade.
Deixaste as tuas sapatilhas de caminhar à frente das minhas e foi bem complicado tirá-las. Já não tínhamos discutido a posição de cada coisa nesta casa? A tua desorganização sempre foi motivo de guerra e, nunca te cheguei a dizer a verdade, mas houve muitas vezes que arrumei as tuas cosias só para não ter que te chamar de novo a atenção. Achas que gritamos muitas vezes? Não tantas quantas podiam ter sido. Ainda estou a pensar naquela vez em que deixaste as calças da semana inteira espalhadas pelo quarto e já nem havia espaço na cadeira para pousar o casaco. Os gritos, o bater de portas, o drama. Os vizinhos até me vieram perguntar, no dia seguinte, se estávamos bem, se tinha havido alguma agressão e se era preciso ir á polícia. Fiquei tão corada que devia parecer um tomate, e sabes que não costumo corar muito! Lá lhes disse que era apenas uma discussão. Foi a partir daí que comecei a arrumar algumas coisas, para evitar mais barulhos e guerrilhas entre nós.
Agora que vejo com outros olhos, não sei o que foi pior, se essa primeira semana com choros e raiva que abrandavam nas nossas intermináveis caminhadas ou as seguintes, em que ficaste trancado em casa, sem falar com ninguém, nem mesmo para comer. O teu aspecto era horrível. A barba por fazer parecia um matagal desordenado, a falta de banho deu-te um aspecto macilento e a restrição alimentar tirou-te quilos e deu-te velhice, levando o brilho dos teus olhos e o sorriso que já não via há dias. Acho que foi pior, ou se calhar não foi assim tão mau, mas é como me lembro dessa época, é como ficou gravada na memória. Não sabia o que fazer mais. As caminhadas foram suspensas porque não saías do quarto, arranjei que te dessem férias no trabalho pois já não ias cumprir as tuas obrigações. Escrevi a carta à tua mãe a contar o que se passava. A mulher estava em pulgas para saber o resultado e haviam já três semanas que o sabias e não lhe disseste nada. Saíste desse teu torpor nesse dia para berrares comigo e culpares-me do que tinha feito. A tua mãe não se devia preocupar. Chorei, choraste, choramos os dois. No fim, sabias que tinha de ser feito e resignaste-te com a realidade. No dia seguinte ficaste de novo em casa, usando um dia doente no trabalho. Voltei a ficar revoltada quando acordei e ainda te vi em pijama no quarto. Saí a correr. Foi tão bom quando regressei e vi as janelas abertas, a casa arejada e uma nota a dizer que tinhas ido ao supermercado comprar ovos. Nunca ninguém ficou tão contente por alguém ter ido ao supermercado como fiquei nessa tarde. Fizeste o jantar e tudo nesse dia, fiquei satisfeita.
Os demais dias passaram normais até aquela manhã em que o carteiro deixou a carta na minha caixa de correio. A tua mãe já havia respondido e dito que nos vinha visitar na próxima quarta-feira. O teu pai estava já a descansar em verdes prados no cemitério ao lado da vossa casa na serra. A carta era a mais temida, do hospital. Não a abri até chegares do trabalho. Ficou a repousar no sobre a fruteira, mas parecia que estava a murchar a fruta, pelo que a mudei para cima da cómoda da entrada. Mesmo aí estava a lançar mau agoiro sobre quem entra em casa. Deixei-a em cima da outra pilha de cartas, contas a pagar, mas estava-lhe a tirar importância. Não sabia se lhe tinha que dar relevo ou não, certamente que importância tinha, pelo bem ou pelo mal. Quando chegaste a carta estava sobre a mesa de jantar, sozinha, ao lado do catálogo daquela loja de móveis que ambos apreciamos e onde compramos o conjunto da sala. Pegaste-a e ficaste a olhá-la pelo que me pareceram ser séculos eternos. Estava tão ansiosa e temerosa que nem me aproximei mais. Fiquei a ver da cozinha. Lentamente, levantaste-te e foste para o quarto. Mais eras passaram por mim. A espera estava-me a matar. Pela meia noite ainda estava na cozinha e tu no quarto, quando ouvi o distinto clique da fechadura a abrir. Estavas a sair de casa sem me dizer nada. Esperei-te no sofá a noite inteira, em claro, preocupada com tudo, sem saber bem onde te procurar. Estava petrificada e assustada. Pelas cinco da manhã a porta abriu-se e entraste. Apenas disseste “Quarta-feira tenho consulta no hospital pelas 3 da tarde. Vais buscar a minha mãe?” Incrédula, acenei afirmativamente com a cabeça. Já não tinha mais nada a dizer.
Quarta-feira chegou e teimei em ir contigo ao hospital. A tua mãe sabia perfeitamente apanhar um táxi para casa. Tristemente, não me deixaste. Maldita sorte! Queria ter ido contigo, também eu saber das coisas certas, pelas palavras do médico. Queria eu ouvir enquanto tu pensavas. O dia passou mais lento que o normal. Colocaram um travão no tempo após as três horas. O comboio da tua mãe atrasou-se e tive que fingir um sorriso quando ela chegou. O trânsito estava mais parado e o carro não arrancava à mesma velocidade que eu pensava. Não sei como chegamos inteiras a casa. A tua mãe não se calava e por pouco não lhe berrava para fechar a boca. Foi mais complicado ainda quando entramos e tive que lhe oferecer o chá. Como não estava ao corrente, inteira-la estava contra o meu âmago. Custou contar-lhe as últimas semanas e já íamos lavadas em lágrimas quando chegaram as cinco horas e entraste em casa. Vinhas calmo. Ninguém falou quando olhaste para nós, aspecto normal mas mente vazia e disseste “Está metastizado”. As minhas piores suspeitas confirmaram-se. Estavas tão bem e tão mal, que admirei a tua força ao te sentares a tomar chá connosco. A minha vontade era sair e, quando regressasse dissesses que estava melhor, que não era cancro e, sobretudo, que não estava metastizado. Todo o meu treino como profissional de saúde não era suficiente para superar o drama que vivia debaixo do meu próprio tecto. Quantas pessoas não havia visto com cancro? E algumas até que tinham superado! Porque estava eu a pensar no pior? Pois é. Ensinaram-me a desligar o botão, a ter um bom processo de coping, mas não me ensinaram a lidar com a família, contigo, com o meu coração.
Agora estás ausente. Estou vazia, sem mais ninguém. Continuo a olhar lá para fora, meu querido. O dia continua claro, as nuvens não ameaçam o céu e tenho que pensar em sair daqui, vestir algo escuro e enterrar o meu coração.

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